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Alunos no controle

Por Agência CNI de Notícias - Publicado 02 de dezembro de 2019

Experiência mostra as vantagens da nova metodologia

Escolas de ensino médio de todo o Brasil estão diante do desafio de implementar, a partir de 2021, as novas diretrizes curriculares nacionais para essa etapa da educação básica. Estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada no final de 2018, as mudanças no ensino médio visam interferir em índices como a existência de 12% dos brasileiros com idades entre 15 e 17 anos fora das salas de aula.

Fatores como falta de identificação com a escola, desconexão com a realidade do aluno, dificuldade de transporte, gravidez na adolescência, defasagem idade-série e necessidade de trabalhar para contribuir com a renda familiar estão entre as principais causas da evasão escolar no ensino médio. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é nesse nível educacional que ocorre o ápice do insucesso escolar: de cada 100 alunos que ingressam na etapa, 23 não seguem para a 2ª série no ano seguinte por reprovação ou abandono.

Os impactos sociais e econômicos da evasão escolar são grandes. Estudo realizado pelo Instituto Ayrton Senna, pelo Insper, pelo Instituto Unibanco e pela Fundação Brava estima que o Brasil desperdiça R$ 35 bilhões por ano com a interrupção na formação educacional de uma parcela significativa da população. O valor foi calculado a partir da renda obtida pelos indivíduos por meio do trabalho ao longo da vida após a conclusão do ensino médio. Outro desdobramento da baixa escolaridade da população está na 71ª posição ocupada pelo Brasil no ranking global de competitividade, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial. A qualificação da mão de obra está entre os fatores levados em consideração na elaboração do índice.

PROJETOS DE VIDA - Para alterar esse cenário, a reformulação do ensino médio aposta em princípios como estímulo ao protagonismo do estudante, foco no projeto de vida do jovem, possibilidade de escolha da área de maior interesse e formação para o mercado do trabalho. A BNCC substitui as tradicionais disciplinas por áreas de aprendizado, que compõem a formação geral básica do novo modelo. "O aluno tem direito de aprendizagem em quatro áreas: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas, além de fortalecer a relação entre elas", explica Danilo Leite Dalmon, diretor de Políticas e Regulação da Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC).

Além da formação geral básica, os novos currículos do ensino médio contemplam os itinerários formativos. Eles consistem em um conjunto de unidades curriculares ofertadas pelas escolas e redes de ensino que possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos em uma determinada área e se preparar para a continuidade dos estudos ou para o mundo do trabalho.

Os itinerários podem ser organizados por área de conhecimento e formação técnica e profissional ou mobilizar competências e habilidades de diferentes áreas, no caso dos integrados. Os estudantes podem cursar um ou mais itinerários formativos, de forma concomitante ou sequencial. Outra característica do modelo é que as redes de ensino têm autonomia para definir os itinerários oferecidos, considerando suas particularidades e os anseios de professores e estudantes.

Organizações da sociedade civil, como o movimento Todos Pela Educação, concordam que o novo modelo dialoga com experiências bem-sucedidas em outros países, bem como que ele permite induzir maior qualidade e equidade nos resultados educacionais. Contudo, há alguma preocupação em relação à sua efetivação. "Uma coisa é falar da arquitetura e outra da implementação. Ainda não há consenso sobre como essa operacionalização vai realmente acontecer", pondera Caio Sato, coordenador do núcleo de inteligência do Todos Pela Educação.

O diretor do MEC explica que, em 2021, todas as escolas deverão implementar, de forma obrigatória, a parte relativa à formação geral dos alunos. Já os itinerários serão implementados gradualmente, conforme cronograma específico de cada rede de ensino.

MUNDO DO TRABALHO - Uma das fronteiras mais importantes na transformação do ensino no país está na preparação do jovem para seu futuro profissional, o que se dá tanto pela integração da formação técnica e profissionalizante no ensino regular quanto pela adoção de novos paradigmas relativos ao processo de ensino-aprendizagem. Mesmo estudantes que não escolherem estudar em uma escola técnica no início da etapa podem optar por compor parte ou toda a sua carga horária destinada aos itinerários com cursos técnicos de acordo com a disponibilidade de oferta em seu território.

No novo ensino médio, a metodologia conteudista que durante décadas ditou a forma como professores e alunos se relacionavam em sala de aula é substituída por uma abordagem focada no desenvolvimento de competências e habilidades necessárias à vida em sociedade e ao trabalho no Século XXI. Assim, a construção de conhecimento por meio de atividades práticas, projetos, oficinas e incubadoras, por exemplo, está na base das novas diretrizes para o ensino médio.

Essa filosofia mais dinâmica de ensino casa, em grande medida, com a abordagem STEAM (acrônimo do inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharias, Arte e Matemática), fundamentada na interdisciplinaridade do conteúdo e na aplicação prática do conhecimento, embora a BNCC não faça menção direta a ela. Além de estimular o interesse pelas áreas que resultam em seu nome, a STEAM tem como marcas o desenvolvimento de habilidades como o trabalho em grupo e a solução de problemas, qualidades essenciais para o contexto laboral.

Para além da filosofia educacional, a jornalista especializada na cobertura de ciência e tecnologia Meghie Rodrigues destaca a relevância das áreas STEAM para o desenvolvimento das nações. De acordo com ela, os países avançados investiram mais nessas áreas em momentos de crise, o que contribuiu para que atingissem o atual estágio de progresso. Contudo, Meghie faz uma ressalva: "é absolutamente importante que as pessoas reflitam sobre as diversas tecnologias e usem o pensamento crítico para extrair o que elas têm de melhor a nos oferecer. Não basta formar meninas e meninos que saibam calcular e programar; é preciso formar gente que saiba pensar sobre o mundo à sua volta. Afinal, é o pensamento crítico que nos torna humanos melhores", diz a especialista.

Adepta da metodologia desde 2014 para todos os níveis da educação básica, a rede de ensino do Serviço Social da Indústria (SESI) tem obtido resultados que mostram o desenvolvimento dos estudantes em aspectos que vão além da maior habilidade com o campo das exatas. "No começo, achávamos que o desenvolvimento dos alunos seria, fundamentalmente, nas áreas de matemática e ciências, mas o que temos visto é que a filosofia STEAM está contribuindo na formação deles enquanto seres humanos", comemora Rafael Lucchesi, diretor de Educação e Tecnologia da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e diretor-superintendente do SESI.

PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS - Com um projeto-piloto desenvolvido em cinco das suas 501 unidades educacionais, em 2018 o SESI começou a testar as novas diretrizes curriculares para o ensino médio. Embora a abordagem STEAM já estivesse incorporada à matriz curricular das suas escolas, a implementação do novo ensino médio era um processo que demandava um esforço adicional.

"Antes, a STEAM era uma forma de abordar os assuntos, mas as disciplinas continuavam existindo. A partir da reformulação do ensino médio, tivemos que repensar e aperfeiçoar a metodologia de modo que ela fosse implementada de forma plena, tal como estabelece a normatização governamental", conta o diretor de operações do SESI, Paulo Mól. A mudança exigiu que o conteúdo fosse trabalhado de maneira ainda mais integrada, respeitando os itinerários estabelecidos pelo novo ensino médio.

No final do primeiro semestre de 2018, a equipe do SESI responsável pelo projeto percebeu que os estudantes atendidos pela nova abordagem estavam respondendo com desempenho melhor que os demais. "Logo ficou evidente que o grande diferencial era o método, já que tanto a escola quanto os conteúdos e os professores eram os mesmos", explica Mól.

Como consequência, em 2019, a filosofia STEAM foi aprimorada para atender plenamente às novas diretrizes curriculares nacionais e aplicada em 19 estados. Para 2020, a expectativa da instituição é que o novo ensino médio já esteja em prática em quase todos os estados. "Estamos crescendo em uma escala geométrica, o que coloca o SESI em uma situação de vanguarda, já que, provavelmente, é a primeira grande instituição a, de fato, trabalhar dentro do modelo pleno da BNCC", avalia Lucchesi.

A experiência dos estudantes apoia as mudanças. Aluna do 1o ano no Centro de Ensino SESI/SENAI Sobradinho, localizado no Distrito Federal, Suyanne Sara é só elogios à metodologia implementada pelo novo ensino médio. "A gente está o tempo inteiro interagindo com as pessoas e aprendemos a ouvir o que elas pensam. Além disso, a gente aprende a não ficar só no que o professor pede, mas a ir além, a fazer nossas pesquisas e conhecer coisas novas, correr atrás do conhecimento".

Para Luís Chagas, seu colega de escola, o maior diferencial da nova abordagem consiste na transversalidade dos conteúdos. "Parece até que não estamos trabalhando, por exemplo, matemática e ciências, mas estamos aprendendo as duas ao mesmo tempo. Isso faz com que a gente absorva o conhecimento de uma forma mais dinâmica e mais interessante", diz o rapaz. Os dois concordam que o dinamismo é a marca principal do novo esquema curricular. "O tempo inteiro a gente está interagindo e isso faz com que a gente aprenda de uma forma mais livre e é muito legal", conta Suyanne, empolgada.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES - As novidades valem também para os professores, que enfrentam novos desafios. No SESI, a qualificação dos professores tem sido realizada desde 2013. "Trata-se, praticamente, de uma formação inicial, e não continuada, já que essa capacitação não é feita nos cursos universitários de licenciatura. Para que o ensino por competências passe a ser um processo natural nas salas de aula, é preciso reconstruir a formação do professor como um todo, inclusive em relação ao conteúdo", conta Paulo Mól.

Apesar do esforço que tem sido empenhado por algumas redes de ensino, a capacitação dos mais de 2,2 milhões de docentes que atuam na educação básica, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), depende da revisão do processo de formação inicial desses profissionais, ou seja, da reformulação dos currículos dos cursos superiores de pedagogia e licenciaturas.

"O Conselho Nacional de Educação está com uma comissão bicameral, composta por conselheiros integrantes das Câmaras de Educação Básica e Superior, desenvolvendo um profundo trabalho de análise e revisão das diretrizes dos cursos de licenciatura", explica Gustavo Fagundes, consultor jurídico do Instituto Latino-Americano de Planejamento Educacional (Ilape).

O especialista esclarece que, embora essas diretrizes para os cursos de licenciatura tenham sido aprovadas antes da definição da BNCC, elas já apresentavam de forma bem delineada a preocupação com o aprendizado por meio de habilidades e competências na formação dos futuros professores. "Essa, aliás, tem sido uma preocupação constante em todas as diretrizes curriculares nacionais aprovadas nos anos recentes", diz Fagundes.

MAIS HORAS - Até março de 2022, a carga horária mínima de todas as escolas brasileiras, que hoje é de 800 horas/ano, deverá ser ampliada para 1000 horas/ano, totalizando 3000 horas/ano ao longo de todo o ensino médio. Após isso, a partir do cronograma de implementação estabelecido pelas redes, a carga horária anual mínima deverá ser progressivamente ampliada para 1400 horas/ano.

As redes de ensino também poderão distribuir a carga horária das unidades curriculares referentes à formação geral básica e aos itinerários do modo que melhor se adequar à sua realidade, desde que seja implementada uma carga anual mínima de 1000 horas para todos os anos do ensino médio até março de 2022.

Por fim, é importante que seja destinada uma carga horária específica para o desenvolvimento do projeto de vida dos estudantes logo no início da etapa, para que os estudantes tenham a oportunidade de exercer seu protagonismo desde o começo do ensino médio.

Especialistas alertam, entretanto, que todos esses esforços podem não gerar os resultados almejados caso outros gargalos do sistema educacional brasileiro continuem sem solução. "A desvalorização da figura do professor torna a profissão pouco atrativa, fazendo com que o ingresso nos cursos superiores de licenciatura se dê pelo processo de exclusão, ou seja, os candidatos optam pelas licenciaturas não pelo interesse no magistério, mas pela inviabilidade de ingressarem nos cursos de bacharelado e tecnologia, tradicionalmente mais concorridos", avalia Gustavo Fagundes.

Caio Sato, coordenador do núcleo de inteligência do Todos Pela Educação, ressalta que não existe uma solução capaz de resolver sozinha todos os problemas do ensino médio. "Essa é a última etapa da educação básica e, com isso, carrega todas as deficiências das etapas anteriores, que começam ainda na alfabetização. Por isso, é preciso ter bastante cautela ao falar sobre o ensino médio, pois, por mais que essa nova arquitetura aponte no sentido desejável, é preciso que o conjunto de políticas seja lançado de forma integrada, como políticas de financiamento, de alfabetização e de carreira docente. Tudo isso precisa caminhar em paralelo com a reforma do ensino médio que hoje, realmente, apresenta resultados críticos".

NOS ESTADOS - A complexidade das alterações, a flexibilidade que o novo ensino médio traz para os sistemas estaduais de ensino e os impactos administrativos e logísticos estão entre os principais desafios na percepção do MEC. "Os sistemas estaduais devem elaborar um novo currículo baseado em áreas e preparar os itinerários formativos. Além disso, devem elaborar as diretrizes curriculares estaduais do ensino médio. Há, ainda, a organização dos professores e alunos por áreas, de acordo com as matrizes curriculares, considerando a possibilidade de assistirem a cursos em diferentes instituições", explica Danilo, do MEC.

Visando facilitar esse processo, o Ministério da Educação tem executado, junto às escolas, o Programa de Apoio ao Ensino Médio, que repassa recursos para a realização de experiências-piloto relativas à flexibilização curricular. Também têm sido destinados recursos para as secretarias estaduais de educação realizarem a adaptação dos seus currículos e pagarem bolsas de formação para multiplicadores trabalharem nos currículos e na formação dos professores. "Além disso, em parceria com o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), temos ofertado assistência técnica aos responsáveis por todas essas atividades nas secretarias estaduais", conta Dalmon.

Secretária de Educação do Mato Grosso do Sul e presidente do Consed, Cecilia Motta explica que essa atuação ocorre por meio da Frente Currículo e Novo Ensino Médio, um grupo de trabalho com representantes das 27 unidades federativas, consultores, parceiros do terceiro setor e o Ministério da Educação. "Esse grupo já realizou dois encontros em 2019 que contribuíram para a construção de propostas a serem desenvolvidas nos estados acerca da escrita dos currículos estaduais e da construção da arquitetura do novo ensino médio".

A percepção da presidente do Consed é de que os estados estão caminhando bem com suas propostas. "Hoje, 97% deles já possuem equipes desenvolvendo o currículo de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, bem como trabalhando na construção da arquitetura da oferta da formação geral básica junto aos itinerários. Além disso, 60% desses estados iniciarão a consulta pública dos seus novos currículos até o final deste ano e os demais no primeiro semestre de 2020", conta a secretária.

ESCOLAS PARTICULARES - Em relação às escolas particulares, responsáveis por 12% das matrículas no ensino médio de acordo com o último Censo da Educação Básica, Dalmon explica que o Ministério da Educação tem realizado orientação, principalmente por meio de articulação com os conselhos estaduais de educação.

Gerente da Câmara de Educação Básica da Associação Nacional de Educação Católica (ANEC), a professora Roberta Guedes afirma, contudo, que uma das dificuldades das escolas particulares para a implementação do novo modelo educacional tem sido a ausência de definições por parte dos conselhos estaduais de educação. "Ainda não temos como adequar as matrizes curriculares e a arquitetura curricular por não termos as orientações legais dos conselhos", explica.

Apesar disso, Roberta conta que as escolas particulares estão, desde 2018, organizando grupos de estudo com a participação de famílias, estudantes do ensino médio, especialistas da educação e gestores educacionais para compreender a BNCC e começar a pensar na adequação dos seus currículos.

Para além dos desafios pontuados pelo Ministério da Educação, a representante das escolas católicas lembra que existem outros aspectos que ainda precisam ser esclarecidos, como a adequação de um ensino inovador e com foco no protagonismo do estudante a avaliações como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), "que estão distantes do que está pressuposto na base", e a construção e potencialização da relação público-privado no que se refere à oferta dos itinerários formativos. Segundo ela, isso é importante "para que realmente tenhamos iniciativas focadas em educação de qualidade e não apenas em ações de governo".

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