Nascida em Israel, a pesquisadora e professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP) Mayana Zatz alerta para a importância dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para a realização de pesquisas científicas no Brasil, inclusive na área médica, em destaque por conta da pandemia do novo coronavírus.
À frente de algumas das pesquisas mais avançadas do país, a renomada bióloga e geneticista classifica de “urgente” a derrubada dos vetos presidenciais à lei pelo Congresso que proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT, aprovada em dezembro.
"As vacinas (contra a covid-19) só foram desenvolvidas em tempo recorde porque países desenvolvidos têm investido pesadamente em pesquisa científica", afirma.
Em janeiro, o Poder Executivo sancionou a lei, mas vetou o cerne do texto, que é a garantia de liberação total do fundo para investimentos em ciência, tecnologia e inovação (CT&I). “Contamos com os parlamentares para derrubar os vetos do presidente”, disse Mayana Zatz em entrevista à Agência CNI de Notícias.
A pesquisadora mencionou exemplos de pesquisas importantes da USP que contaram com recursos do FNDCT, entre elas a que relaciona o vírus Zika à microcefalia. Zatz também advertiu que outros importantes projetos em andamento serão interrompidos no Brasil caso os recursos do fundo sigam bloqueados para investimentos. Leia a entrevista abaixo:
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Qual é a importância do FNDCT para a realização de pesquisas na USP e no país?
MAYANA ZATZ - O mais importante é que sem recursos a gente não faz pesquisas científicas. Para contextualizar, desenvolvemos inúmeras pesquisas, sobre diversos temas, no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP. Elas têm uma enorme complexidade. Precisamos como nunca dos recursos do FNDCT para a ciência e tecnologia. As vacinas contra a Covid-19 só foram desenvolvidas em tempo recorde porque países desenvolvidos têm investido pesadamente em pesquisa científica.
Aqui no Brasil inúmeros projetos serão interrompidos se não houver possibilidade de obter esses recursos. O FNDCT é fundamental para não interrompermos as pesquisas em ciência e tecnologia. Contamos com os parlamentares para derrubar os vetos do presidente ao projeto que descontingencia os recursos do FNDCT. Essa é uma questão urgente para a ciência no país.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Como o FNDCT foi importante na pesquisa da USP que relacionou o vírus Zika à microcefalia?
MAYANA ZATZ - Quando tivemos uma explosão dos casos no Nordeste (em 2015) e bebês nascendo com microcefalia, a partir de mães infectadas, notamos que o número de bebês que nasciam com microcefalia era relativamente pequeno, menos de 10%. Fomos para o Nordeste e fizemos uma pesquisa em campo e um estudo genético em que resolvemos focar em gêmeos. A partir do sangue, a gente tem uma tecnologia para diferenciar qualquer tipo celular. Derivamos no laboratório genes desses gêmeos. Geramos células tronco neuroprogenitoras, que vão dar origem ao cérebro. Aí infectamos essas células com o vírus da Zika.
Descobrimos que, para desenvolver a síndrome da zika congenita, o bebê tinha que ter genes de suscetibilidade. A gente conseguiu demonstrar no laboratório o que vinha acontecendo na vida real. E isso tudo só foi possível a partir de financiamentos públicos, que nos permitiram fazer essas pesquisas.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - A partir dessa constatação, vocês deram início a uma nova pesquisa relacionada ao câncer. A senhora pode detalhar?
MAYANA ZATZ - Isso. O mais interessante foi a continuação do trabalho. Chegamos à conclusão de que tumores cerebrais eram destruídos pelo vírus. Então, injetamos o vírus (Zika) em camundongos com tumores cerebrais e notamos que em todos os casos regrediram ou desapareceram – em um terço dos animais. O próximo passo foi fazer em animais maiores. Injetamos o vírus da Zika em três cães em estágios terminais de câncer. Novamente os tumores regrediram sem nenhum efeito colateral. Com a pandemia, paramos a pesquisa, mas queremos retomar. A ideia é fazer testes em humanos, com tumores totalmente letais e intratáveis.
Esse é um dos exemplos da importância de termos recursos do FNDCT para financiar a Finep e todos os órgãos que financiam pesquisas científicas. Para cada real investido em ciência e tecnologia, temos um retorno pelo menos 10 vezes maior. Em termos de saúde não dá sequer para se medir os ganhos.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - As pesquisas envolvem elevados investimentos de risco, que não necessariamente dão retorno ou resultam em produtos que vão para o mercado. Como a senhora vê essa questão?
MAYANA ZATZ - Sempre digo que há risco em qualquer pesquisa. É diferente de dizer que precisa de x dinheiro para construir uma casa. Apostar em ideias novas podem ou não dar resultado. Mas quando o resultado vem é excelente. Como na pesquisa em andamento que relaciona o efeito do Zika vírus no câncer. Os primeiros resultados nos deixaram empolgados, porque os tumores cerebrais se destruíram rapidamente. Outro exemplo atual são as vacinas para a Covid-19, que, em menos de um ano, foram desenvolvidas. Isso só foi possível em razão de se ter investido muito dinheiro, tecnologia, know-how e mão de obra.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - A senhora pode contar algum outro exemplo de pesquisa da USP que corre o risco de ser interrompida se não houver recursos do FNDCT?
MAYANA ZATZ - Temos vários outros exemplos. O Xenotransplante é um deles (processo de transferir cirurgicamente um tecido de uma espécie para outra distinta). Sabemos que os suínos têm os órgãos mais semelhantes ao do ser humano. A partir daí, começamos no Centro de Genoma da USP esse projeto e conseguimos alterar os genes dos suínos para que não causem rejeição se forem transplantados em humanos.
O próximo passo é criar os porcos em ambiente estéril. Conseguimos avançar na primeira fase da pesquisa e agora precisamos de recursos para a segunda parte, que será a construção dessa facilidade e a parte clínica. A nossa ideia é começar com o rim, pois milhares de pessoas precisam desse órgão no Brasil. Pretendemos transplantar rins de suínos em pacientes que estão em hemodiálise e não têm doador. Nessa fase inicial, colocaríamos sob a pele. Se não houver compatibilidade, o paciente voltará para a hemodiálise. Se der certo, o transplante será feito por completo. Mas só avançaremos nessa pesquisa se houver recursos para investirmos.