Nos últimos dois anos, o Brasil alterou 18 medidas antidumping por meio do instrumento de interesse público. De acordo com levantamento realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), esse número corresponde a 35% das 51 medidas que estavam em vigor no país desde 2019, quando a nova legislação para o uso desse mecanismo entrou em vigor.
Para representantes da indústria, além de prejudicar o setor, as mudanças indicam que o governo é tolerante com práticas desleais de comércio internacional. Segundo o diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI, Carlos Eduardo Abijaodi, “se essa diminuição representar o enfraquecimento do sistema de defesa comercial, como tem sido o caso, a indústria brasileira pode ser inviabilizada em determinados setores, gerando estímulo às importações desleais com práticas condenadas na Organização Mundial do Comércio (OMC), possível desemprego e redução de investimentos”.
O instrumento de interesse público visa, excepcionalmente, modificar as medidas de defesa comercial que forem mais prejudiciais para o conjunto da economia do que benéficas para um determinado setor que sofre com a importação desleal. Além do Brasil, apenas Canadá, Nova Zelândia e União Europeia possuem esse tipo de previsão em suas legislações. Nos últimos dois anos, apenas o Brasil fez uso do mecanismo.
Embora seja regulamentado e, portanto, legal, o embate tem girado em torno da aplicação excessiva do instrumento. Para Abijaodi, a adoção desse argumento está beneficiando exportadores, sobretudo de países sem uma economia de mercado mais livre, como é o caso da China.
“O Brasil tem confundido as esferas concorrenciais e comerciais em suas análises de interesse Revista Indústria Brasileira público, muitas vezes beneficiando a competitividade artificial, provenientes de intervenções do Estado na economia de outros países, em detrimento da indústria nacional”, argumenta.
Vidro e Química
Dois setores industriais diretamente impactados com a flexibilização da política antidumping do país são os de vidro e o químico. Em 2020, o Departamento de Defesa Comercial (Decom) reconheceu que a alíquota aplicada na importação de vidros para eletrodomésticos da linha fria (geladeiras) não corrigia o dumping praticado pela indústria chinesa e recomendou o aumento da alíquota.
O governo, contudo, optou por não corrigir o dano. Para Lucien Belmonte, presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), foi como se o governo tivesse dado um cartão vermelho para a produção nacional.
“É preciso corrigir a distorção existente em relação ao exportador chinês. No Brasil existem 10 fábricas de vidro plano, nos Estados Unidos são 22, no México são 5 e na China são 250. Eles não sabem o que fazer com tanto vidro e exportam com preços muito abaixo do valor de mercado. Por isso é que sete países têm medidas específicas contra a China na área de vidro plano e o Brasil também precisa ter”, explica Belmonte.
Além da concorrência desleal, outro desdobramento da flexibilização das medidas antidumping é a insegurança jurídica trazida ao setor produtivo. André Passos, diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), credita esse cenário à elevada discricionariedade dos técnicos da Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) do Ministério da Economia, que podem, sem base em fatos de investigação, retirar percentuais de direito antidumping a total juízo de conveniência e oportunidade em detrimento dos direitos dos produtores nacionais.
O diretor da Abiquim considera que, a longo prazo, essa flexibilização reduzirá o interesse das empresas no mercado local e aumentará a dependência do produto importado. “No caso da química, 46% do total dos produtos químicos de uso industrial consumidos no Brasil já são importados”.
Lideranças industriais chamam a atenção, ainda, para o fato de o governo federal estar negligenciando um fator essencial na flexibilização do dumping: o Custo Brasil.
“Precisamos ressaltar que as medidas antidumping existem para retomar uma condição de igualdade entre o produto nacional e o internacional, mas elas não compensam as deficiências geradas pelo Custo Brasil e existem apenas para proteger o mercado local de um comércio predatório, em que o custo de venda no Brasil seja menor do que o custo de produção nos países de origem desses produtos”, ressalta o diretor da Abiquim, André Passos.
Nessa mesma linha, o presidente da Abividro afirma que não é interesse da indústria ter preço mais alto do que o ofertado no mercado internacional e cobra medidas mais enérgicas do governo para solucionar a equação.
“Além de a China subsidiar a produção industrial local, no Brasil enfrentamos desafios como ter o gás natural mais caro do planeta, e nosso maior custo é exatamente o gás natural. Portanto, além de aumentar a alíquota de produtos oriundos da China, o país precisa adotar medidas que minimizem de forma efetiva os impactos do Custo Brasil. Só assim teremos uma indústria forte e competitiva”, pondera Belmonte.
Para o diretor da CNI, Carlos Eduardo Abijaodi, a competitividade da indústria brasileira virá com as reformas necessárias, investimentos em infraestrutura, além de outras importantes iniciativas para aplacar o Custo Brasil. “Tentar dar competitividade por meio de eliminação de medidas antidumping, além de não alcançar esse objetivo, pune empresas que jogam limpo no comércio internacional”, diz ele.