No início de abril, o anúncio de uma série de medidas econômicas para minimizar os impactos da pandemia do novo coronavírus na saúde financeira das empresas trouxe um certo alívio para o setor produtivo. Iniciativas como a Medida Provisória 944/2020, que abriu uma linha de crédito especial de R$ 34 bilhões para financiar até dois meses da folha salarial, soaram como um oásis no meio de um deserto inóspito. A previsão do Banco Central era de que, ao todo, as ações ampliassem a liquidez do sistema financeiro em quase R$ 1,3 trilhão, quantia equivalente a 16,7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Na prática, contudo, as empresas têm constatado que se trata de um oásis quase seco ou, em alguns casos, de uma miragem distante. "A forma como o crédito está sendo concedido não alcança todo mundo. Além disso, tem alcançado quem não precisa, quem tem outras formas de captar dinheiro", lamenta o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedo (Abrinq), Synésio Batista.
Na base do descompasso entre a liberação do dinheiro pelo Tesouro Nacional e sua efetiva chegada ao destinatário está o modus operandi do sistema financeiro. Pautado pelo Acordo de Basiléia, o sistema financeiro mantém, mesmo em período de crise, a realização das análises de pagamento.
"As empresas ficaram sem receita, mas as despesas foram mantidas. Isso, claramente, abriu uma brecha no caixa e a solução passa pelo crédito. Contudo, os bancos não liberam recursos para as empresas que acham que vão quebrar", explica o gerente executivo de pesquisa e competitividade da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Renato da Fonseca.
Do outro lado do balcão, o presidente da Associação Nacional da Indústria Cerâmica (Anicer), Natel Moraes, conta que havia a expectativa de que o crédito para a folha de pagamento chegasse a todas as empresas, sem distinção. "Isso não vem acontecendo. As instituições financeiras seguem fazendo análise de crédito de forma normal, criando várias dificuldades", conta Moraes.
O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, explica que, apesar de não possuir garantias atreladas ao desembolso da linha de crédito estabelecida pela MP 944/2020, é necessário manter um padrão mínimo de avaliação "para trazer o maior grau de certeza possível de que os recursos possam retornar aos cofres públicos".
Obstáculos encontrados durante a crise
Levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) constatou que 38% das empresas do setor buscaram crédito em abril e todas encontraram obstáculos. Em vez de redução das exigências, 57% identificaram aumento nas garantias exigidas, tais como duplicatas, garantias reais, carta garantia da matriz, imóveis, volume de aplicações e fiança.
"A única forma que eu vejo de haver destravamento do crédito é utilizar o Tesouro Nacional como garantidor. Do contrário, os bancos continuarão sem emprestar porque não querem correr riscos", avalia Humberto Barbato, presidente da associação.
Outro aspecto do problema refere-se ao fato de a crise não ter impactado a todos da mesma forma.
"Os setores que estão operando mais dentro da normalidade estão tendo uma análise de crédito mais benevolente em função dos próprios balanços, mas isso não pode ser assim porque, caso contrário, vamos ver uma mortandade de empresas", alerta Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).
A fórmula estabelecida pela MP 944/2020, por meio da qual a União arca com 85% dos recursos e os bancos com os outros 15%, com o risco de inadimplência dividido na mesma proporção, tem sido apontada como a principal causa do insucesso da medida. Lideranças do setor produtivo têm sido enfáticas ao afirmar que qualquer linha de crédito somente chegará às empresas se o governo ampliar a sua participação no risco.
Um exemplo vem dos Estados Unidos, onde o Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, criou uma linha de crédito na qual responde por 95% do risco. "Por que um país que acha que o governo não deve intervir no setor privado fez isso? Porque ele sabe que, se as empresas quebrarem, a crise vai ficar ainda mais séria e não será possível sair dela tão cedo", avalia Renato da Fonseca, da CNI.
Representante do sistema financeiro, o presidente da Febraban defende os percentuais estabelecidos na medida provisória. "Acreditamos que a linha emergencial foi bem desenhada, com percentuais corretos de recursos dos setores público e privado, considerando as principais variáveis deste momento", diz Isaac Sidney.
Sobre as dificuldades, o executivo explica que, por se tratar de uma linha de crédito emergencial, os modelos de crédito dos bancos precisaram ter seus parâmetros alterados. "Tivemos muito êxito na medida em que fizemos uma pré-análise de crédito de todas as empresas elegíveis. No final de abril, 90% delas haviam sido aprovadas".
Alternativas para destravar a liberação do crédito
O auxílio emergencial concedido às pessoas físicas e a redução do depósito compulsório dos bancos junto ao Banco Central provocaram debates sobre alternativas para destravar a liberação do crédito. Enquanto alguns analistas defendem que, a exemplo do benefício governamental aos cidadãos, o Tesouro Nacional também precisa se relacionar diretamente com as empresas, outros acreditam que a solução passa pela vinculação da redução do compulsório à concessão de empréstimos.
Na CNI, Renato da Fonseca lembra que, ao contrário de doação, a concessão de empréstimo está atrelada à garantia do recebimento do dinheiro de volta. Em relação ao compulsório, ele é enfático ao dizer que não se pode obrigar as pessoas ou empresas a fazerem qualquer coisa. "O banco empresta se ele quiser".
O gerente da CNI enfatiza a importância de o Tesouro ter maior participação no risco neste momento. "Pode ser que os 85% funcionem e pode ser que não. A questão é aceitar que pode haver calote no futuro, mas não há alternativa fora desse cenário". Nesse sentido, tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que, entre outras medidas, prevê a permissão para que o Banco Central atue na compra de títulos públicos.
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