Com o objetivo de manter, em 2021, a recuperação da economia iniciada no terceiro trimestre deste ano, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) propôs ao Ministério da Economia um conjunto de medidas para um período de transição, com duração de um ano. A entidade também sugere a retomada das propostas estruturais que vinham sendo discutidas antes da pandemia da Covid-19. Os estudos da CNI apontam que a implementação dessas medidas permitirá sustentar a recuperação da economia nos próximos anos.
Elaboradas com base na experiência concreta dos desafios encontrados pelas empresas industriais, as Propostas para a Retomada do Crescimento Econômico foram divididas em dois blocos. No primeiro, estão cinco medidas prioritárias de transição, a serem adotadas imediatamente. No segundo, há 14 propostas estruturantes para a melhora do ambiente de negócios, a redução do Custo Brasil e o estímulo ao investimento.
Entre as medidas imediatas está, por exemplo, a manutenção dos programas de crédito emergencial até, pelo menos, junho de 2021. Além de prolongar os programas emergenciais de financiamento, as outras quatro medidas indicadas pela CNI para serem adotadas imediatamente, durante um período de transição, são as seguintes: manter e avançar em medidas de aplicação imediata de modernização, simplificação e eficiência das relações do trabalho; parcelar os pagamentos dos tributos adiados; instituir um programa de parcelamento de débitos com a União; e manter a política de expansão do crédito e redução do custo do financiamento.
Manoel Pires, economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), ligado à Fundação Getúlio Vargas, diz que a redução dos estímulos ao longo do próximo ano tem de ser feita de maneira adequada para manter a recuperação. “Temos alguns objetivos que são, de certa forma, muito antagônicos. A dosagem da retirada dos estímulos é muito importante. Precisamos ter uma saída da crise adequada sem aumentar de maneira expressiva o risco fiscal, mas ao mesmo tempo dando algum suporte para a atividade econômica”, afirmou ele durante evento organizado pelo Ibre e pelo jornal Folha de S.Paulo.
“Quando a gente olha o orçamento para o próximo ano, a gente vê que o déficit primário vai sair de 13% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2020 para algo próximo de 4% em 2021. Não é trivial retirar essa quantidade de estímulos e achar que a economia vai resistir ou vai ter um desempenho positivo”, comentou Pires. “Acredito que a retirada dos estímulos de transferência de renda deve ser mais rápida, mas devemos permanecer um pouco mais com os estímulos de crédito para a empresa, para que elas possam se capitalizar e se recuperar. Elas vão precisar de mais tempo para fazer isso”. Segundo ele, o Brasil fez uma coisa diferente da maior parte dos países.
“Focamos muito na proteção das pessoas e menos na proteção para as empresas. Quando você olha os outros países, você vê que essa composição foi muito diferente. Ela foi mais ou menos meio a meio. E, em alguns casos, mais direcionados para proteger as empresas por meio do estímulo de crédito, para estas poderem sobreviver. Quando a pandemia acabar, a demanda por trabalho se normalizará rapidamente. Essa será uma questão importante no ano que vem”, explica Pires.
O presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, avalia que as medidas emergenciais adotadas pelo governo e o Congresso Nacional foram essenciais para a retomada da economia, mas “empresas, famílias e governos estão saindo da crise bastante fragilizados, de modo que a transição para o crescimento sustentado se apresenta como mais um desafio”. Segundo ele, as ações propostas ao Ministério da Economia “representam uma cartilha de forma estruturada e objetiva para o Brasil acelerar o desenvolvimento econômico e social, gerar emprego e renda”.
Na avaliação da CNI, “é pouco provável que o sistema financeiro retorne à normalidade no curto prazo. Isso significa que a demanda por crédito continuará a suplantar a oferta de modo significativo”. Além disso, são necessários aportes adicionais do Tesouro Nacional nos programas que apresentarem escassez de recursos para as operações. A prorrogação das medidas trabalhistas, assim como a adoção de novas, é importante porque os efeitos da pandemia sobre a economia permanecerão até haver a imunização da maior parte da população.
Nesse cenário, as empresas terão que continuar adotando medidas para evitar o contágio, como operar com bancos de horas e/ou turnos reduzidos e com parte do pessoal trabalhando a distância. Conforme a proposta entregue ao Ministério da Economia, “a esperada retomada depende também de ações na seara trabalhista que combinem não só geração e preenchimento de vagas de trabalho e de turnos de trabalho, como também medidas que facilitem a gestão imediata de rotinas trabalhistas”.
Carlos Eduardo Abijaodi, diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI, diz que as medidas de postergação de pagamentos de tributos adotadas durante o pior momento da crise foram muito importantes para evitar a falência das empresas. Segundo ele, a normalização da economia levará tempo e, no processo, as empresas se encontrarão ainda bastante fragilizadas. “Estamos saindo de uma crise com empresas que estavam paradas, não estavam produzindo, não tinham faturamento e ainda voltando a meia carga, com empregados trabalhando com maior distanciamento nas fábricas”.
Por isso, avalia ele, são necessárias ações e políticas específicas para o período de transição entre as medidas emergenciais e o crescimento sustentado, como o parcelamento dos tributos federais, cujo recolhimento foi adiado. “Mesmo medidas corretamente adotadas durante a pandemia terão um impacto agora. Foram quatro meses sem pagar os impostos e o empresário ainda não tem o faturamento. Agora é preciso evitar que mais empresas quebrem, com prazo de 12 meses para pagamento dos tributos”, defende o diretor da CNI.
A manutenção dos programas emergenciais de crédito é importante, diz Abijaodi, para que as empresas possam ter acesso a financiamentos mais baratos durante esse período de transição. “É importante, ainda, ter prorrogação dos prazos de pagamento de empréstimos bancários que estão vencendo, uma vez que a empresa está produzindo metade de sua capacidade e ainda não recuperou o faturamento. Além disso, ela tem dificuldade em obter o insumo e, em alguns casos, ainda não tem um comprador para entregar o produto”, conta o diretor da CNI.
Milhares de empresários em todo o país têm relatos dessas dificuldades. Em Goiânia, Reginaldo Abdalla, diretor da Confecções Manga Rosa, conta que o parcelamento do pagamento de tributos é uma medida que pode ajudar as empresas a terem um fôlego financeiro, mas o mais importante é fazer chegar o crédito às empresas que precisam. “O que o governo fez sem a interferência dos bancos deu certo. Quando o banco entrou, não deu certo. É preciso obrigar os bancos a cumprirem o que foi autorizado: colocar empréstimo para capital de giro das empresas”, reivindica.
Segundo ele, cerca de 6.000 empresas do setor de confecções fecharam em Goiás durante a pandemia. “São empresas com 15 a 20 anos de mercado, que empregavam entre 100 e 200 pessoas e não conseguiram os financiamentos com juros menores dos que o governo anunciou”, diz ele.
“Nossa empresa é de médio porte e, depois de cinco meses, conseguimos crédito num banco privado para pagar folha de pagamento. Entre abril e agosto, usamos recursos próprios, mas tem um problema mais sério: todas as empresas têm contratos com os bancos para descontar cheques e duplicatas e antecipar recursos pagos com cartão de crédito. Como muitos clientes não pagaram duplicatas em dia, sustaram cheques ou tiveram seus limites cancelados, tivemos mais problemas”, explica Abdalla.
Para evitar esse estrangulamento financeiro que pode dizimar empresas descapitalizadas, a indústria defende uma política de aumento da liquidez no mercado financeiro e a manutenção da política de redução da taxa de juros, em especial a política de redução do spread bancário. Segundo Abijaodi, as medidas de aumento de liquidez adotadas durante o ápice da crise ajudarão na recuperação à medida que a confiança retornar. Para isso, o Banco Central deve continuar com a política de estímulo à demanda, mantendo baixa a taxa básica de juros (Selic). Adicionalmente, afirma ele, é importante manter os esforços para a redução do custo do financiamento.
O programa de parcelamento de débitos com a União proposto pela CNI já vem sendo debatido no Congresso Nacional, onde estão em discussão dois projetos. Na Câmara dos Deputados, a proposta foi apresentada pelo deputado federal Ricardo Guidi (PSD-SC), que prevê o refinanciamento de dívidas com o governo federal em função da pandemia da Covid-19 (PL 2375/2020). Na mesma linha, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) sugere a criação do Programa Especial de Regularização Tributária em razão dos efeitos econômicos provocados pela pandemia (PLP 152/2020).
No documento enviado ao Ministério da Economia, a indústria defende a criação de um programa com amplas condições de uso de créditos tributários, próprios e de terceiros, para a compensação das dívidas tributárias, o uso de precatórios para a quitação de dívidas de qualquer natureza e a monetização do prejuízo fiscal em 2020. De acordo com o documento, o atraso no pagamento de tributos acontece justamente para viabilizar o cumprimento das demais obrigações financeiras que as empresas possuem. Essa é, muitas vezes, a única opção encontrada pelas empresas para obter algum alívio de caixa e, assim, conseguir se manter em operação.
Manoel Pires, do Ibre, diz que o Brasil precisa administrar dois riscos: retirar os estímulos e o risco fiscal. “Quando se administra dois riscos antagônicos, a tendência é escolher o caminho do meio. É preciso retirar alguns estímulos, mas que não sejam muito abruptos, porque aí você consegue desmontar o arcabouço fiscal da pandemia que o governo criou. Ainda que gere alguma pressão sobre a dívida para o próximo ano, você começa a sinalizar uma estratégia para retirar e criar um caminho de consolidação fiscal mais à frente. E isso vai ensejar novas reformas, novas medidas estruturais”, diz o especialista.
Reformas estruturais
O segundo bloco das Propostas para a Retomada do Crescimento Econômico inclui medidas das áreas de comércio exterior, financiamento, infraestrutura, inovação, política industrial, recursos naturais e meio ambiente, relações do trabalho, reforma administrativa e tributação. Abijaodi lembra que a indústria brasileira já se mostrava debilitada antes da crise atual, com perda de espaço no cenário internacional e mesmo no mercado doméstico, o que justifica a importância da implementação, também, de ações de médio prazo.
Ao entregar o documento ao secretário especial de Produtividade e Emprego do Ministério da Economia, Carlos da Costa, Robson Braga de Andrade destacou a importância da reforma tributária para aumentar a competitividade da indústria brasileira. Segundo ele, é preciso tomar medidas sérias e, às vezes, duras. “Essas medidas passam por algumas reformas que estão sendo discutidas no Congresso e a mais importante delas é a reforma tributária. Apoiamos uma reforma ampla, que inclua todos os impostos e não apenas os federais”, defendeu o presidente da CNI.
Andrade disse que o ideal seria ter um Imposto sobre Valor Agregado e, se não for possível a unificação num só tributo, que não sejam criados mais que dois, um federal e um estadual, com o pagamento sendo feito no destino e não na origem. Isso precisa ocorrer “sem aumento da carga tributária”, lembra Andrade, que sugere enfaticamente uma melhor distribuição da carga tributária entre os diversos setores. Segundo ele, “a indústria brasileira representa em torno de 21% do PIB, mas paga 32% dos tributos federais e 42% dos tributos estaduais e municipais”.
Imposto digital
“A reforma tributária é essencial, mas somos contra a criação de um imposto digital, que seria uma CPMF revestida com outro nome”, registrou o presidente da CNI.
Isso não significa, entretanto, que não existam ações nessa área para criar maior isonomia tributária no setor produtivo. “Somos a favor da tributação sobre algumas atividades hoje exercidas em meios digitais e que não contribuem, como sites, sistemas e plataformas que estão fora do Brasil e que não requerem pagamento de impostos”, exemplificou Andrade durante o evento no Ministério da Economia. Embora o governo tenha manifestado a intenção de criar um tributo sobre transações digitais, ainda não enviou a proposta ao Congresso Nacional.
A CNI defende uma reforma que torne o sistema tributário mais simples e eficiente, com foco na redução da cumulatividade. Isso permitirá a desoneração completa dos investimentos e das exportações e aumentará as condições para os produtos brasileiros competirem com os estrangeiros nos mercados interno e externo. Embora o governo não tenha enviado ainda sua proposta, o tema vem avançando no Legislativo, tendo como base a Proposta de Emenda Constitucional 45, em discussão na Câmara dos Deputados, e a PEC 110, em análise no Senado Federal. Para agilizar os trabalhos, foi criada uma comissão especial integrada por deputados e senadores.
José Ronaldo Souza Júnior, diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), considera que a aprovação de uma reforma tributária que reduza a complexidade tributária poderá estimular a recuperação da economia. “Reduzir o número e a diversidade de alíquotas poderia dar uma competitividade maior para a indústria. Além disso, se não tivermos reformas que ajudem a conter o crescimento dos gastos públicos, dificilmente conseguiremos uma retomada mais intensa”, avalia o especialista.
Estudo elaborado pelo Ipea mostra que a economia brasileira manteve, ao longo do terceiro trimestre de 2020, uma trajetória de recuperação após o choque da pandemia da Covid-19 em março e abril. Conforme análise apresentada na Carta de Conjuntura 48, divulgada em outubro, essa retomada pode ser explicada pela “gradual flexibilização das restrições à mobilidade de pessoas, pela extensão do auxílio emergencial, pela ampliação do crédito a micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) com garantia do Tesouro e pela política monetária expansionista”.
Responsável pelo documento, Souza Júnior avalia que, no curto prazo, a intensidade da recuperação ainda depende da evolução da pandemia, em especial da continuidade da trajetória de redução do número de novos casos e mortes. Já as perspectivas para a economia no médio prazo, diz ele, “dependem também da redução das incertezas em relação à manutenção da política fiscal, que é o que mais tem afetado as expectativas, principalmente de empresários”. Segundo o economista, os dados de atividade econômica de julho e agosto mostram que a recuperação iniciada em abril continua em curso.
Otto Nagami, professor do Insper, também chama a atenção para a falta de definição de uma política industrial clara para a retomada da economia. “A gente percebe alguns ramos de atividade caminhando, inovando, mas não há uma preocupação convergente do governo. Então, na verdade, cada um está indo pelos seus meios, pelo seu conhecimento, mas não dentro de um plano nacional. Acho que falta um plano nacional de renovação de indústria, um norte”, avalia o professor.
Segundo Nagami, a pandemia levou muitas empresas a fecharem as portas e isso vem gerando um outro problema na retomada das atividades econômicas: conseguir novos fornecedores. “Conversando com algumas indústrias grandes, percebe-se que a grande dificuldade que eles estão sentindo agora é identificar novos fornecedores. Não é só identificar; a questão é identificar e certificar. Esse é um processo longo. Portanto, até a indústria retomar o ritmo anterior, vai demandar alguns meses”, prevê. Para ele, também é importante investir em pesquisa e inovação para que a recuperação seja sustentável.
Entre as 14 propostas estruturantes apresentadas pela CNI ao Ministério da Economia estão, ainda, a garantia do aumento e a estabilidade de recursos para Pesquisas, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), como previsto no PLP 135/2020 em discussão na Câmara dos Deputados, após ser aprovado no Senado Federal. O projeto prevê a liberação total dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
No documento, a CNI defende a aprovação, na íntegra, do PL 6407/2013, conforme o texto da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, que está em discussão no Senado. O preço do gás natural para o setor industrial no Brasil é um dos mais elevados do mundo, sendo um obstáculo para a competitividade da indústria. Os preços do gás no Brasil variam de US$ 8 a US$ 12 por milhão de BTU, o dobro de mercados como os Estados Unidos. Com preço mais baixo, investimentos podem chegar a R$ 150 bilhões em 2030, com incremento na competitividade de setores industriais como química, siderúrgica, alumínio, cerâmica, vidro e papel e celulose.