Quando começou a se aprofundar nos estudos sobre cidades inteligentes (smart cities), uma coisa chamou a atenção da doutora e palestrante Stella Hiroki: como o cenário de pesquisa era majoritariamente masculino.
“Tanto palestrando, quanto assistindo a palestras, eu olhava em volta e só via nucas brancas”, conta Stella, fazendo referência ao perfil do público predominante no debate, no Brasil e no mundo.
Mas, num futuro não tão distante, as coisas devem mudar. Além da real necessidade em diversificar as vozes na hora de pensar e elaborar políticas públicas, há também um crescente interesse do público feminino em áreas tecnológicas. E, de acordo com Hiroki, é justamente com as inovações tecnológicas que surgirão melhorias para as grandes cidades.
Neste contexto, a chegada da robótica educacional é considerada um ponto de virada para democratizar o interesse por áreas como Ciências, Engenharia e Matemática. Em uma conversa com a Agência CNI de Notícias, Stella Hiroki fala sobre o tema da atual temporada das competições de robótica FIRST LEGO League – Citty Shaper, organizadas, no Brasil, pelo Serviço Nacional da Indústria (SESI).
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – O que você considera primordial na elaboração de uma cidade inteligente?
STELLA HIROKI - É necessário trazer mais discussões e debates para que os espaços sejam mais acolhedores para todos os grupos. Quando fui fazer minha pesquisa em Dublin, na Irlanda, me chamou atenção essa questão de gênero. Falei com o meu orientador e ele me pediu para conversar com os desenvolvedores de softwares e aplicativos. Aí o que percebi foi que as mulheres não tinham voz na discussão sobre planejamento urbano. Uma das mulheres que entrevistei sofreu um acidente de bicicleta. Um dos motivos do acidente foi que, na pista feita para ciclistas, ela não tinha aderência por causa do baixo peso, por ser mulher e, portanto, de menor estatura. Então, ela começou a pensar em espaços mais seguros para as mulheres estacionarem as bicicletas, que eram distantes do prédio, mais perigosos à noite. Quer dizer, são espaços pensados por homens e que acabam sendo inseguros e agressivos para as mulheres.
A diretora de Operações do Facebook, Sheryl Sandberg, no livro Faça Acontecer, fala sobre o período dela de gravidez e do quanto a vaga exclusiva para gestantes ficava distante da entrada do prédio. Ela teve de convencer os outros diretores da empresa de que, no período final da gestação, ficava difícil caminhar tanto até o prédio. Então, são coisas assim que precisam ser levadas em conta quando vai se construir uma tecnologia. Aquela tela linda brilhante de um tablet tem um social por trás. Você precisa entender que está lidando com pessoas e que essas pessoas precisam estar ali, no projeto. Não dá para desenvolver as coisas pensando somente no homem branco, senão, você cria um espaço de competição, e não de interação.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – E como seria, na sua opinião, o cenário ideal para tratar do assunto?
STELLA HIROKI - O conceito de smart cities vai nos mostrando como a tecnologia tem um ponto de vista de pertencimento, as pessoas precisam sentir que pertencem àquele espaço. Isso, obviamente, não quer dizer que homens brancos não possam ser prefeitos, nem elaborar políticas públicas (risos), mas, quando se trata de cidades inteligentes, quanto mais você dá voz para diferentes atores – mulheres, mulheres da periferia, idosos, pessoas com deficiência – você consegue entrar nessa visão mais acolhedora e mais 360 graus. As mulheres são as que mais se deslocam no espaço urbano porque nós temos a função de cuidadora na sociedade, inclusive no transporte público. Então, como podemos elaborar ações e políticas sem ouvir essas mulheres?
Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz e autor do livro O Banqueiro dos Pobres, uma vez comentou com seus alunos: "estamos aqui na universidade, estudando políticas públicas, temos uma comunidade aqui do lado, e nunca fomos até lá conversar com as pessoas, perguntar o que elas acham do que estamos desenvolvendo para elas". Isso que acaba ficando de lado em muitas discussões. E, também, a tecnologia vem crescendo numa velocidade muito mais rápida do que os governos podem acompanhar, o que é ótimo, porque é uma disrupção. Mas, os governos e governantes precisam entender que os cargos mudam de quatro em quatro anos, mas as mudanças nas cidades são lentas. O legado que precisa ser deixado tem que ser de longo prazo. As políticas públicas precisam ser duradouras. Quanto mais você incentiva as características econômicas locais, mais a economia vai ser estendida a longo prazo.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Na sua avaliação, o que uma cidade precisa ter para ser considerada inteligente? Como você explicaria esse conceito?
STELLA HIROKI - Olhando para o Brasil, olhando para o que tem de legal aqui, percebemos que cidades de pequeno e médio porte têm como criar projetos que vão ajudar, não precisa que eles sejam desenvolvidos na capital. Tem que ter política pública pensando em deixar um legado de inovação, de economia criativa, política pública a longo prazo e dando espaço para a sociedade civil. Não pode ser um movimento top down, do governo para pessoas. Tem que ser um movimento bottom up, das pessoas para o governo. A cidade inteligente não vai mudar o sistema, apenas vai torná-lo mais eficiente porque há mais acesso às informações geradas pela infraestrutura de tecnologias da informação e comunicação (TICs) que permeiam o espaço urbano. Em Joinville (SC), foi feita uma parceria entre o governo local e o Waze, por meio do programa Waze for Cities Data. A partir das informações sobre engarrafamentos, eles conseguiram criar soluções, como rotatórias, semáforos etc. Quer dizer, usaram essa dinâmica de informações e tornaram o espaço público muito mais organizado e acolhedor para as pessoas, com uma tecnologia que está aí, disponível aos governantes e sociedade civil.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Os aplicativos podem ser uma forma de deixar as cidades mais inteligentes?
STELLA HIROKI - Não é só vigilância e não é só aplicativo que formam uma cidade inteligente. Hoje, estamos mais focados nos dados, quais tipos de dados estamos coletando e estudando porque o ser humano sempre vai ter novas ideias. A minha formação inicial é em comunicação, midialogia. Viver numa cidade é um grande diálogo, te passa muita informação sobre o lugar. A tecnologia vem nos dar novas experiências de espaço urbano, tudo na palma da mão.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – E o que você acha do ensino da robótica nas escolas?
STELLA HIROKI - Quando eu tinha 14 anos, meu pai me colocou num curso de hardware, era basicamente desmontar e montar um computador. Eram 15 alunos, mas só tinha eu e outra aluna de mulher. Isso em Cascavel (PR), anos atrás. Agora você vê, eu passei no vestibular pra Unicamp e ela pra USP. Então, ter tido a oportunidade do contato com tecnologia desde cedo é uma chave de virada para toda as experiências da vida. E não é a robótica em si, mas é o que eles estão aprendendo, que vai fazer com que eles tenham sempre que entender o que é inovação para se adaptarem às mudanças profissionais e o que o mundo demanda de novos projetos.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Na atual temporada do torneio de robótica FIRST LEGO League, tivemos, no Brasil, um número recorde de meninas inscritas, elas já são quase a metade dos competidores.
STELLA HIROKI - Dá pra melhorar, mas, já é um número bem expressivo. Especialmente porque é algo muito profundo. Os brinquedos, até hoje, ainda são muito direcionados. A questão da tecnologia ainda é muito ligada à máquina, à ferramenta, ao homem. Isso precisa mudar. Tecnologia é pra quem quiser! O Brasil está melhorando muito. Hoje já existem muitas associações e organizações que chamam as meninas pro debate, que querem repensar isso, a exemplo do grupo mundial de inclusão na tecnologia chamado PyLadies e a competição que incentiva a participação de meninas na programação de aplicativos, Technovation.
AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Neste sentido, a tecnologia também pode ser considerada como ferramenta de inclusão social?
STELLA HIROKI - Com certeza. Os celulares estão ao alcance de todos e podem dar muito mais autonomia, inclusive, para quem vive na periferia. O Brasil é um dos países em que as pessoas mais têm celular. No entanto, devido às questões sociais, há ainda um grande percurso para se utilizar essa poderosa ferramenta de maneira crítica. A tecnologia pode estar na mão de todos, mas vale ressaltar que ela não é neutra, há um ponto de vista muito forte de quem as desenvolve.