Em 2019, o Congresso Nacional e a Presidência da República promulgaram 190 atos normativos, tratando de temas desde a reforma da Previdência até a lei que altera a relação financeira entre o Banco Central e o Tesouro Nacional, passando por mudanças na forma como assinantes podem cancelar serviços de TV por assinatura e pela criação do Cadastro Positivo.
O número parece pequeno diante das 5.680 propostas de lei –ou para modificar leis já existentes– que a Câmara dos Deputados recebeu em 2019, mas o aumento de normas reforça uma característica negativa do arcabouço legal do país: a insegurança jurídica.
A principal referência normativa do país, a Constituição Federal, tem pouco mais de 30 anos e, até 2018, recebeu 16 emendas só de questões tributárias. Levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) naquele ano mostrou que, nas primeiras 3 décadas em vigor da Constituição, foram editadas cerca de 5,9 milhões de novas normas, uma média de 774 por dia útil.
Outro dado curioso é que apenas 4,13% das leis editadas no período não sofreram alteração. Isso significa que não apenas leis estão sendo criadas ou alteradas antes que se possa criar jurisprudência ou um entendimento consolidado sobre os temas tratados.
Advogado constitucionalista, Eduardo Mendonça afirma que a criação de novas leis nem sempre é positiva, porque há inúmeros normativos em vigor no país que são mal desenhados. “Há casos de leis que são formuladas com pontos em aberto, que acabam gerando dúvidas sobre as obrigações existentes. Mas há também casos de averiguação exagerada na interpretação que é dada para a lei”, defende o advogado.
Para Mendonça, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) é exemplo de normativo que dificulta a criação de consensos, enquanto a liberação de licenças ambientais mostra como é possível haver discrepâncias na interpretação de um normativo legal.
“O CDC é pouco claro e muito rígido sobre o que é abusividade, por exemplo. Por conta disso, o sistema de proteção ao consumidor tem atuação muito combativa e que usa interpretações que destoam das decisões de vários tribunais. Para o setor produtivo, o efeito é que aumenta a cautela, porque há receio de receber multas, que não são baratas. Já a legislação que trata de licenças ambientais é exemplo de aplicação confusa de uma lei, porque não raras vezes temos três instâncias decidindo sobre a liberação de um empreendimento – a prefeitura, o governo do estado e o governo federal. Como não há critérios harmônicos, a obra fica paralisada até que se chegue a um consenso”, comenta.
O famoso "Custo Brasil"
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) classifica a insegurança jurídica como um dos fatores que integram o chamado custo Brasil, expressão que resume as dificuldades e entraves de se investir no país. O superintendente Jurídico da CNI, Cassio Borges, explica que normas estáveis e de boa qualidade são fundamentais para a redução nos custos operacionais das empresas e para a retomada dos investimentos do setor produtivo.
De acordo com relatório que avaliou a competitividade de 18 países selecionados, o Brasil ficou na última posição no fator que avalia a segurança jurídica, burocracia e relações do trabalho.
“É necessário que se respeite o direito de indivíduos e das empresas, aplicando as leis de forma previsível e consistente no tempo. O julgamento divergente de casos similares é uma das principais fontes de insegurança jurídica”, afirma Borges. Ele destaca ainda que, para melhorar o ambiente de negócios no Brasil, é necessário reforçar três pilares: a previsibilidade e qualidade das normas; a previsibilidade na aplicação das normas; e a redução da judicialização. “O uso excessivo da Justiça para a solução de conflitos prejudica o desempenho do próprio Poder Judiciário e a competitividade das empresas”, defende Borges.
Aperfeiçoar o marco normativo que define como novas leis são criadas é uma forma de tentar reduzir o problema, pontua o constitucionalista Eduardo Mendonça. Ele conta que vários países exigem um estudo do impacto regulatório de uma nova norma, detalhando os reflexos que ela pode ter em setores específicos da economia e estimulando amplo debate sobre a proposta de lei. “Esse cuidado é interessante porque traz uma análise sobre os custos e os benefícios das mudanças que estão sendo propostas. Geralmente, isso faz com que as leis sejam melhor formuladas”.
Outro cuidado seria adotar, de fato, a cultura de precedentes no país, que é quando juízes de instâncias inferiores seguem as diretrizes de decisões tomadas em tribunais superiores. O Código de Processo Civil lista desde 2015 detalhes sobre o sistema de precedentes, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebem todos os anos inúmeros casos em que têm que analisar decisões de 2ª Instância em que não foram observadas as linhas definidas pelas Cortes jurídicas altas.
“Essa cultura de precedentes ainda está se formando no país. No Brasil, há a ideia romantizada que o papel do juiz é fazer justiça, que é uma violência cobrar do juiz que ele siga o entendimento que já existe sobre um determinado assunto em vez de fazer o que acha melhor. Mas o juiz faz parte de um sistema. Quando ele não observa algo que já foi julgado nos tribunais superiores, ele acaba aumentando a insegurança jurídica e aumentando os custos de todo o sistema judiciário”, afirma Mendonça.
Cipoal tributário
A legislação complexa e confusa afeta setores produtivos de formas distintas. Empresas de produção de energia elétrica e de telecomunicações lidam com questões diferentes de empresas do setor de construção civil ou que produzem bens duráveis. Mas todos os segmentos industriais do país têm que lidar com a falta de clareza do sistema tributário em vigor.
Diretor do departamento jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), Helcio Honda explica que a complexidade ocorre nas 3 esferas –federal, estadual e municipal. “Eu diria que é quase impossível ter 100% de atendimento (aos dispositivos legais), por mais que a empresa queira. É muita norma”, afirma.
Honda também destaca que a falta de clareza faz com que o sistema seja punitivo: “Às vezes, você tem uma determinada norma avaliada por 3 consultores tributários e eles vão dar 3 opiniões. E o auditor terá uma 4ª opinião. Infelizmente, no sistema tributário, o auditor não pode dizer ‘olha, acho que você agiu de boa fé e vou deixar de aplicar o auto de infração’. Ele é obrigado a fazer o auto de infração, então o sistema hoje é punitivo. Ele leva você a fazer contenda judicial. Não tem métodos alternativos.”
A série Caminhos da Indústria – desafios e oportunidades é produzida pelo Poder360 Mercado, divisão de conteúdo patrocinado do Poder360, com apoio da CNI. Leia todas as reportagens.